Pecado
Eu estava caminhando, era noite. Subia uma rua totalmente escura. Minha visão estava turva, horas antes tinha bebido além da conta. Minha simples família, uma singela esposa, dormia à minha espera. Ela já estava acostumada com as escapadas pós jornada de trabalho. Até minhas traições aceitava. Realmente não entendia o que se passava na cabeça e no coração daquela mulher.
Mas isto não importava naquele instante. Durante algumas noites, minha esposa me questionava, outras vezes, ignorava a situação. Eu reagia da mesma forma, alimentando que a amava. Tudo muito cômodo aquela vida.
Quando chequei em casa, estranhei o fato da luz do quarto estar acessa. Adentrei em silêncio e, me surpreendi ao vê-la sentada na cama. Estava de cabeça baixa, analisando algumas fotos antigas. Percebi que caia algumas lágrimas pela sua face. Minha mente já imaginava que seria difícil aquela noite.
Aproximei dela, com uma voz charmosa.
— Oi, meu amor!
Ela me repeliu, não querendo muito contato.
Estranhei novamente a falta de ruído, me deixava curioso a incomodado. Outra vez tentei contato, abraçando em seguida.
— Meu amor, está tudo bem?
Desta vez, ela foi mais grosseira, levantando da cama, só que antes, olhou diretamente em meus olhos. Foi um olhar tão perigoso, tão profundo, que não sei como, ou por quê? Tive medo.
Ela insistia em não conversar, estava em pé, perto da televisão, pegando em um urso de porcelana que eu dera em nosso primeiro mês de namoro. Quando eu a conheci, percebi o quanto gostava dos ursos. O engraçado que nunca quis saber o real motivo. Próximo do nosso aniversário, encontrei este urso negro de porcelana. Lembro quando abriu a embalagem, foi de uma alegria enorme.
Minha esposa não trabalhava, pelo menos naquela fase, tinha acabado de perder um filho, não aguentou a pressão e caiu de cama. Inicialmente eu ficava ao seu lado, só que depois, voltei aos meus afazeres, e ela não. Sucumbiu na lama do fracasso de ser mãe. Diante de tanta dor, eu fugi para as bebidas. Ela se afastou do nosso relacionamento, não se importando com nada. Inclusive com os meus casos.
Mas aquela noite, nos seus olhos chorados, eu tive pela primeira vez remorso. Vendo-a em pé, chorando e alisando o urso, minha boca ficou trêmula, as palavras não saiam, de repente, virou-se para mim, olhou novamente em meus olhos, segurava a boca para não cair em choro, tentou ser forte, aí, disse:
— Eu…eu..eu, não amo mais o amor!
Foi um choque. Esperei ela expressar mais algumas coisas. Tentei em ir em sua direção, ela levantou a mão, pedindo que não me aproximasse, obedeci. Demonstrou que queria dizer mais algumas palavras.
— Eu adoro este urso. Pegava carinhosamente nele.
Sentando em seguida no chão, com o bichinho de porcelana na mão.
— Sabe, eu amava tanto, mas tanto, que hoje eu o odeio. Porque ele me lembra de alguém tão bonito, tão exclusivo ao meu sentimento, tão único. Aquele amor afagava minha ira e meus amores. Hoje sinto um buraquinho; Aponta para seu coração; — Crescendo a cada dia mais…
Nesta hora, resolvi interromper a conversa.
— Amor! Rapidamente ela gritou…
— Cale-se! Que droga, me ouça.
Fiquei estático com tamanha brutalidade e verborragia na sua voz.
— Meses atrás eu perdi um pedaço de mim, tive que enterrar meu filho, um pedaço da minha pele, dos meus olhos, dos meus cabelos, da minha face, do meu coração, da minha alma. Eu enterrei um sonho, fracassei na vida perdendo alguém que veio de dentro de meu corpo. Não posso perdoar isto. Sou falha em ser eu mesma!
Minhas lágrimas desciam pela minha face.
— Calma querida! Pedi amorosamente.
Ela nem me ouviu, despejando um monte de cobranças.
— Chega! Eu cansei meu amor. Não aguento mais o pecado que carrego comigo, além disto, tem você, me crucificando por perder nosso filho.
Tentei mostrar para ela que não tinha nada haver.
— Não meu amor, você não é culpada de nada.
Ela riu…
— Você me mata! Sabia? Todos os dias, me mata, me julga, me abandona. Quando fico sozinha, ouço um barulho dentro de mim, um misto de choro e sinfonia, acredita? Eu sou isto, um retalho perdendo os restos das linhas…
Naquele instante, não sabia mais o que fazer…
— Quando casei contigo, pensei em ter encontrado a estrada da salvação. Agora eu vejo que luto contra o fruto da perdição, que é – te amar na solidão.
Eu estou indo embora desta vida, desta casa, deste fracasso, tudo aqui, até mesmo você, meu marido, grita derrota. Seus erros são desumanos. Seus pecados, um brinde de prazer soluçantes.
Após esta fala, ela saiu correndo do quarto, se trancando no banheiro. Tentei pedir para ela abrir, deveríamos conversar, tentar ajudar um ao outro. Mas ela não me ouviu, eu sentei de costas na porta, olhava para o urso de porcelana jogado no chão, minha lamentação era explosiva. Acabei com o tempo, pegando no sono, acreditando que ao acordar, tudo seria um sonho…
Escrito por: Carlos Monteiro
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